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MÚSICA

O voo universal da saudosa Tuca

A cantora e compositora lésbica Tuca nunca deve ser esquecida, pois sua obra é uma das mais geniais da MPB
27/04/2024 16:51
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Tuca foi uma das primeiras cantoras e compositoras assumidamente lésbicas da MPB. Talvez tenha sido também a primeira compositora LGBTQIAPN+ do Brasil que abordou a homoafetividade feminina por um viés erótico.

Seu nome verdadeiro era Valeniza Zagni da Silva, mas ficou conhecida pelo apelido Tuca, que ganhou na infância e a acompanhou durante toda a vida.

A genialidade artística de Tuca já era percebida desde a sua infância, pois aos 11 anos ela já dava concertos e, aos 13 anos, diplomou-se no Conservatório Nacional de Música do Rio de Janeiro, mediante uma licença especial, já que a idade mínima para obter o diploma era 16 anos. Nesse período Tuca já era uma habilidosa instrumentista, sobretudo do acordeon, que estudou influenciada pela mãe que, como legítima italiana, era afeita ao instrumento. Tuca também se dedicou, no seu período inicial de estudos musicais, ao piano e, posteriormente, ao violão.

Sua primeira composição gravada foi "Homem de Verdade"(com Consuelo de Castro), em 1964, na voz da cantora Ana Lúcia, mas foi somente dois anos depois que ela ganharia projeção nacional, no Festival Internacional da Canção de 1966. Tuca apresentou nesta edição do FIC a canção "O Cavaleiro", parceria dela com Geraldo Vandré, que obteve o segundo lugar no festival e ganhou elogios cintilantes de Amália Rodrigues, a grande dama do fado, que participou deste festival como jurada.

Uma característica marcante dos dois primeiros álbuns de Tuca é a afinidade que possuíam com a estética nacional-popular dos festivais de música brasileira dos anos 1960 e 1970. O padrão destes dois álbuns iniciais não seria mantido no seu terceiro e último álbum. Outro elemento marcante desta primeira fase de sua discografia são as parcerias com a irreverente dramaturga Consuelo de Castro(1946-2016).

Em 1968, Tuca decide se autoexilar na Europa, em virtude do recrudescimento do regime militar no Brasil e também por aspirações profissionais dela. O período em que Tuca permaneceu na França é o mais frutífero de toda a sua carreira.

No ano de 1971, em terras francesas, Tuca arranjou e tocou violão no célebre álbum "Dez Anos Depois" de Nara Leão. Neste mesmo ano compôs 10 das 12 canções do álbum "La Question" da famosa cantora francesa Françoise Hardy.

Foi também na França onde gravou seu mais prestigiado álbum "Drácula, I Love You" com Mário de Castro, LP bastante reverenciado pela temática homoerótica feminina atribuída às canções e cuja inspiração foi a série "Fantasias" da então namorada de Tuca, a artista plástica Jeannette Priolli, que falou com o Observatótio G:

"Nos anos 72/73 fui bolsista pelo Governo Francês e conheci a Tuca assim que cheguei lá e, em seguida, fomos morar juntas. A partir de conversas despretensiosas e das imagens das pinturas da série "Fantasias", que eu produzia na época, a Tuca começou a compor músicas também inspiradas no xamanismo (apresentei a ela os escritos de Terence McKenna) e me pediu que colocasse as letras em algumas, já que escrevia poemas. Nesta época, o Mário de Castro também começou a participar e as músicas foram acontecendo. O resultado não se restringia a relações pessoais entre nós, o xamanismo vai muito além de qualquer enquadramento. Há o sentir do Coração Universal como única batida. Foi assim."

Porém, segundo a própria Jeannette, as canções do álbum, que teve faixas censuradas pela ditadura militar, traziam um quê de erotismo também:

"As letras para a época eram, sim, bem sensuais, porém a Tuca fez uma defesa meio debochada que atrapalhou a cabeça dos censores, misturando até ficção científica e outras histórias mais, então foram liberadas com o argumento dos censores de que ninguém vai entender."

Tuca deixou uma obra pequena, mas de qualidade inestimável. Conseguiu a façanha de ser, em seus trabalhos, genuinamente brasileira, mas também universal. Permitiu-se e nos permitiu voar, colorir e saborear canções. Foi uma artista livre, cuja obra nos transporta para a atmosfera de liberdade poética e criativa que ela alcançava. Sem dúvida, é uma das maiores artistas da história da música brasileira. Sua voz nos dá asas. Ouçam Tuca! Aproveitem esse voo!

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